Você sabe o que é nutricionismo?
Por Rita Lobo - 22 de maio de 2021
Quem gosta de pensar a alimentação pode incluir na lista de leitura um livro fundamental, que acaba de ser lançado no Brasil: Nutricionismo, do pesquisador australiano Gyorgy Scrinis, ganhou edição em português.
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Conversei com o autor na live de lançamento do livro Nutricionismo. Você pode assistir aqui:
O título, Nutricionismo, é a contração de reducionismo nutricional. O conceito foi criado por Scrinis para definir o que ele vê como uma distorção da maneira de estudar o alimento. Bem no comecinho do livro ele conta como foi o momento em que se deu conta de que havia algo muito errado com a maneira como o alimento estava sendo estudado:
"Minha dieta (...) consistia em grande parte de alimentos vegetais minimamente processados, incluindo lentilhas, meu pão de fermento natural assado em casa e ovos de nossas próprias galinhas criadas livres. Entretanto, o ovo frito na manteiga e a torrada de farinha branca que eu comia no café da manhã pareciam quebrar algumas das regras nutritivas do dia, já que a refeição estava mergulhada em gorduras saturadas, colesterol e nos chamados carboidratos refinados. (...) O foco da pesquisa científica e das diretrizes dietéticas nos nutrientes estava produzindo o que me pareciam ser algumas recomendações distorcidas, além de comprometer escolhas alimentares óbvias."
Tem alguma coisa muito errada quando o seu pão (caseiro) com ovo (da sua galinha, criada solta!) é visto como vilão. Scrinis mergulhou na pesquisa do que ele define como um paradigma, um sistema em si, que percorre todos os elos nutrição. Começa numa ciência reducionista, dentro da pesquisa acadêmica, que gera achados simplistas. Esses achados são rapidamente incorporados pela indústria dos ultraprocessados, que amplifica essas simplificações para vender mais produtos. Esses novos produtos, que alardeiam promessas falsas de uma saúde melhor influenciam a escolha do consumidor, que aos poucos foi se contaminando por essa lógica.
Na apresentação, a professora Inês Rugani Ribeiro de Castro diz que o livro nos brinda com lentes que modificam profundamente a maneira como lidamos com nutrição. E depois de ler o retrato completo que ele faz desse sistema, parece mesmo que estamos com óculos novos. Quando termina de ler o livro você entende por que passou tanto tempo confuso com as notícias sobre pesquisas ligadas à nutrição e as aparentes contradições, alçando alimentos a heróis e depois condenando os mesmos alimentos como vilões.
Vamos ao conceito central do livro: Nutricionismo é esse olhar com o foco restrito ao nutriente, muitas vezes ao nutriente único, ignorando a interação entre nutrientes, ignorando a qualidade do alimento em si e também a combinação entre alimentos que formam um padrão alimentar.
Para corrigir essa distorção, ele sugere o paradigma da qualidade do alimento. O foco deixa de ser o nutriente e passa a ser a qualidade do alimento que está sendo consumido. E para avaliar essa qualidade, criou uma classificação com 3 categorias que levam em conta o grau de processamento. Se você pensou no Guia Alimentar para a População Brasileira está certo. Eles são da mesma turma, por assim dizer.
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Mas antes de entrar na classificação por grau de processamento, o pesquisador mergulha no estudo do Nutricionismo e identifica três momentos históricos diferentes:
Nutricionismo Quantificador - Nesse primeiro momento, todos os nutrientes são vistos como bons. A busca era descobrir quanto de cada nutriente as pessoas precisavam para não ter doenças. Vai até a década de 60. Nesta época a preocupação principal eram as doenças causadas pela deficiência de nutrientes, como o escorbuto (que afeta quem não ingere vitamina C suficiente).
Bom x ruim - O segundo momento é marcado pelo surgimento de nutrientes ruins, que devem ser evitados com o objetivo de reduzir doenças. É o caso das gorduras ruins. Começa na década de 60, com o aumento das doenças coronárias.
Funcional - Na terceira fase, que se iniciou na década de 90 e continua até hoje, o foco muda para o nutriente bom, aquele que otimiza o corpo. Nutrientes afetam funções corporais e tornam o corpo "aprimorado".
Scrinis aponta o auge de cada um dos momentos, mas eles estão sobrepostos, criando uma enorme confusão. Isso leva, segundo ele, a duas reações: de um lado, o consumidor que fica perdido, precisa de aconselhamento e vira presa fácil para as armadilhas do marketing da indústria. Do outro, o consumidor que, munido dessas simplificações, se sente totalmente informado e acaba desenvolvendo uma forma de arrogância – consome uma dieta distorcida, que defende baseado num conhecimento baseado em conclusões reducionistas. E surfando nessa confusão toda, está a indústria dos ultraprocessados, que encontra reforço na academia, para legitimar produtos que não são criados para melhorar sua alimentação, mas sim para aumentar o seu consumo.
Qual a solução para essa confusão? Ele sugere uma mudança de sistema, o paradigma da qualidade dos alimentos, que se baseia em quatro pilares:
Mudar o foco da análise nutricional-científica para o alimento e o padrão alimentar - Não é o nutriente que atua sobre um biomarcador, mas sim uma dieta, um cardápio, que alimenta uma pessoa ou uma comunidade.
Valorizar o conhecimento cultural e tradicional - Se a manteiga vinha sendo consumida há séculos por populações inteiras, será mesmo que devíamos correr o risco de recomendar a todas as pessoas do mundo trocar pela recém-criada margarina? Fazer melhores escolhas inclui confiar no conhecimento que foi reunido ao longo da história.
Valorizar e resgatar a experiência sensorial e prática - Isso quer dizer calibrar (ou recalibrar) o paladar. Lembrar que sabemos qual é o gosto do alimento, o cheiro e a textura do alimento. E podemos confiar nos nossos sentidos para avaliar se o alimento tem qualidade ou não.
Priorizar a qualidade da produção e do processamento dos alimentos - Para ele, é preciso avaliar a qualidade dos alimentos com base nos tipos de processamento. Ele usa uma classificação bastante similar à do Guia Alimentar para a População Brasileira. Tem algumas diferenças de nomenclatura e uma definição que chama a atenção: Scrinis descreve os ultraprocessados como alimentos degradados durante o processamento.
Aprendizado na cozinha
Quando olho essa lista, vejo uma relação muito próxima com o trabalho do Panelinha. Valorizar o conhecimento tradicional + resgatar a experiência sensorial e prática. A soma desses dois pilares leva direto para a cozinha.
As receitas e as combinações dos alimentos foram sendo desenvolvidas ao longo da história. O equilíbrio perfeito do nosso pê-efe, com arroz, feijão e hortaliças, foi sendo encontrado por gerações e gerações até chegar à nossa mesa no almoço de hoje.
E a partir do momento em que você está na cozinha, transformando ingredientes que vêm da natureza em alimentos gostosos, sem perceber já vai calibrando seu paladar e todos os outros sentidos. Seja para identificar se os ingredientes estão próprios para serem consumidos: você vai olhar, dar uma apertadinha, sentir o cheiro, experimentar. Seja, durante o processo de cozimento, ao provar sua comida, ajustar o sal, sentir o perfume da adição de uma erva ou especiaria.
calibrar o paladar É um processo natural que quem cozinha todos os dias faz sem perceber e que vai formando uma defesa também natural ao apelo dos ultraprocessados.
Quando você está com o paladar calibrado na comida de verdade, o salgadinho é salgado demais, o iogurte com sabor é artificial demais, a bolacha do pacote tem gosto de gordura e açúcar. Você não cai na pegadinha. Ou cai menos.
Mudança macro
Aqui no Panelinha, o foco é em resolver a sua vida, usar todas essas informações disponíveis para no fim levar você para a cozinha amparado por receitas que vão tornar suas refeições mais gostosas, saudáveis e práticas. Mas existe um macro, e quando a gente pensa nesse cenário maior, a adoção da classificação dos alimentos por grau de processamento como parâmetro para a pesquisa científica é uma mudança importante, que vai aos poucos corrigindo as distorções criadas pelo nutricionismo e gerando estudos que comprovam que o que importa é a qualidade do alimento, é a maneira como esse alimento foi preparado.
O exemplo mais contundente é a pesquisa de Kevin Hall, publicada em 2019, em que um grupo foi dividido em dois. Eles receberam dietas com a mesma quantidade e distribuição de nutrientes. Em uma, tudo era ultraprocessado. Na outra, só comida de verdade. Depois de duas semanas trocava. Você deve lembrar o resultado: durante o período em que consumiram ultraprocessados, eles engordaram. Leia sobre a pesquisa que prova que ultraprocessado engorda aqui.
O conceito criado por Scrinis é um precursor dessa mudança, está em sua origem, e por isso é fundamental.