A armadilha do aplicativo de entrega
Por Rita Lobo - 10 de fevereiro de 2020
Ao longo de quatro décadas, vi muitas mudanças na relação das pessoas com a comida. A quitanda sumiu, o mercado virou supermercado e depois hipermercado. Os ultraprocessados apareceram e começaram a ocupar cada vez mais espaço na mesa brasileira. As pessoas foram deixando de comer arroz, feijão e hortaliças para jantar lasanha congelada, nuggets de frango, sopa de saquinho, macarrão instantâneo…
Aquecer o molho de tomate enlatado e misturar com macarrão virou sinônimo de cozinhar.
Resultado: só nos últimos dez anos, a obesidade cresceu 60% no Brasil. Com o aumento do sobrepeso na população, a comida virou o inimigo e veio a brecha para os modismos nutricionais e a invasão das dietas.
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Por outro lado, surgiu a classificação dos alimentos por grau de processamento, o termo ultraprocessado e com isso o conceito de comida de verdade foi se consolidando. As empresas enxergaram aí um mercado incrível: vender comida para pessoas que cada vez menos sabem, querem ou priorizam cozinhar.
Os aplicativos de entrega são os mais novos integrantes deste sistema alimentar que afasta você da cozinha. Os executivos dessas novas empresas, em várias entrevistas, descrevem o fogão como maior concorrente e vislumbram a casa do futuro sem cozinha. Um deles inclusive diz que o objetivo é fazer as pessoas pararem de cozinhar. Ou seja, a estratégia é tirar sua autonomia e, com o perdão do trocadilho, fazer você comer na mão deles! Mas, aqui entre nós, o objetivo mesmo é ter mais lucro e não leva em conta a saúde da populacão.
O discurso – ou marketing – do aplicativo é bom: entregar comida de verdade na sua porta. Agora, uma coisa é pedir uma refeição vez ou outra, mas quando o objetivo do aplicativo é que todas as suas refeições sejam feitas por ali, é preciso olhar para essa oferta de forma mais criteriosa.
A comida de verdade, com base no padrão alimentar tradicional brasileiro, contém cinco grupos de alimentos. Um prato-feito balanceado, de acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira, é assim: de um lado, arroz e feijão; do outro, legumes e verduras e, para quem come carne, um pedaço de carne. A fruta é sobremesa. Agora vamos pegar um exemplo de "pê-efe" do aplicativo: vai arroz, feijão, batata, farofa e linguiça. Ou seja, tem o triplo do que você precisa de alimentos do grupo de cereais e tubérculos, nenhuma hortaliça e a carne é de qualidade questionável e em quantidade desproporcional.
Uma refeição desbalanceada não tem problema. Mas no longo prazo, se a rotina for essa, a conta vai chegar.
Já no plano mais conceitual, quem abre mão de cozinhar perde autonomia e acaba fazendo piores escolhas. Aí você vai cair no papo da marmita fit, que em vez de ser uma opção saudável é, mais uma vez, desbalanceada: tem hortaliças, mas não tem leguminosas.
E, logo mais, só falta eles lançarem a marmita com áudio de mindfulness…
É engraçado como essa turma que abraça a tecnologia sem reflexão se afasta de tarefas como cozinhar e depois fica indo atrás de métodos para recuperar os momentos de mindfulness.
Quando você cozinha, não cai em nada disso porque não precisa de nada disso. Já está exercitando o foco no presente.
É muito simples: se não estiver atento na cozinha, ou se corta ou se queima ou queima a comida.
Cozinhar vai muito além de preparar o próprio alimento ou nutrir a família. É uma forma de se conectar ao essencial. E, depois de meia hora, você produz algo muito concreto: uma refeição que alimenta.
Se precisar de sugestões de cardápio, aqui tem uma seleção de refeições que ficam prontas em 30 minutos.