Vai ter pê-efe!
Por Rita Lobo - 05 de março de 2017
No ano passado, fui convidada pela Organização Pan-Americana de Saúde, e também pelo Ministério da Saúde, para participar de uma reunião com os coordenadores do SUS e falar sobre alimentação saudável. Durante o evento na sede da OPAS, ficou claro para mim que, um dos obstáculos que enfrentamos no Brasil em relação à alimentação saudável de verdade é o preconceito. Sim, brasileiro ama, mas tem um pouco de vergonha de arroz com feijão. Acha que é muito simples.
Há muitos outros obstáculos, como a falta de habilidades culinárias – que a maioria das pessoas traduz como ‘falta de tempo’. (Mas, para isso, a gente tem bastante bagagem: há 17 anos o Panelinha ensina as pessoas a cozinhar!) Já o arroz com feijão, salvo algumas postagens especiais no Panelinha, e uns episódios na temporada de básicos do Cozinha Prática, nunca foi um foco editorial com tanta ênfase.
Saí de Brasília com uma certeza: em 2017, meus esforços seriam para fazer a nossa dupla nacional ganhar mais prestígio na mesa dos brasileiros. Sem falsa modéstia, sou boa nessa coisa de dar um toque de glamour às coisas simples. Convenhamos, porém, que a minha força é limitadíssima, especialmente se comparada ao poder do marketing das indústrias que querem vender comida pronta. Por outro lado, nos 17 anos do site, ganhamos bastante popularidade com o público que nos acompanha. Era tudo verdade: cozinhar é transformador, libertador. Muita gente sentiu na pele a mudança – até a saúde melhora. E esse público só cresce.
Mais do que um símbolo, o arroz com feijão, de fato, é a base do nosso padrão alimentar tradicional. E ele é possivelmente a mais eficiente arma que nós, cidadãos, temos à mão contra a epidemia de obesidade que assola o país. (O governo e as empresas têm muito mais a fazer, mas, individualmente, o primeiro passo para reverter esse quadro é voltarmos a cozinhar.)
Mais da metade da população está com sobrepeso. É um número chocante, especialmente se nos lembrarmos que, na década de 1970, uma parte significativa da população, especialmente infantil, sofria com a desnutrição. Mesmo que a obesidade não tenha batido à sua porta, ela sai caro para os cofres públicos. Mas por que o arroz com feijão é assim tão importante?.
Quem segue um padrão tradicional de alimentação engorda menos
Quem explica são os epidemiologistas – que são os cientistas que estudam o que funciona e o que não funciona na vida real. Depois de décadas tentando entender o que os países com menores índices de obesidade têm em comum, eles chegaram a uma conclusão. No Japão, na França, na Espanha, na Suécia, para citar alguns dos desses países, o que a alimentação tem em comum é que é feita a partir de comida de verdade (que é o oposto da comida ultraprocessada), geralmente em casa, com alimentos fartos na região, e seguindo um padrão alimentar tradicional.
Dá para dizer assim: o padrão tradicional de alimentação de um lugar é a dieta criada pela população no decorrer de centenas de anos; ele leva em consideração os hábitos e também os alimentos amplamente disponíveis. A dieta mediterrânea é boa? Excelente. Especialmente para quem vive na região do Mediterrâneo. E a francesa? Incrível, principalmente se você domina as técnicas culinárias francesas e tem à disposição toda a variedade dos ingredientes de lá.
Nos lugares onde os índices de obesidade são baixos, os padrões alimentares são tão sólidos que blindam as populações contra a comida ultraprocessada, os fast foods e as dietas da moda abraçadas pela indústria. (Enquanto escrevo este post, os vilões da vez são o glúten e a lactose; mas há pouquíssimo tempo era o carboidrato como um todo, especialmente quando ‘consumido no jantar’; e antes disso, foi a vez da gordura, tudo era fat free na década de 1990. Mas é possível que, quando você estiver lendo este texto, o problema já tenha migrado para outro nutriente ou talvez para a proteína, único macro-nutriente que ainda não foi atacado. Mas, em função de terem crucificado tanto a gordura como o carboidrato, uma hora vai sobrar para ela.)
Coma com prazer – e não medicalize a comida
A gente não precisa das dietas da moda, nem da mediterrânea, nem da cultura gastronômica francesa para manter uma alimentação saudável no Brasil. Porque temos um padrão alimentar tradicional! Arroz com feijão é a base, e é também um símbolo. Mas a nossa culinária vai muito além. Ela é vasta, já incorporou muito de outras culturas. É riquíssima. E as boas notícias não param por aí: manter uma alimentação saudável seguindo o padrão alimentar tradicional brasileiro, ainda sai por menos do que se basearmos a alimentação em comida comprada pronta. (Nos EUA, essa situação é inversa, em função da demanda. Não podemos deixar isso acontecer por aqui.)
Um leitor que não se conforma com a polêmica da maionese ainda vai me perguntar: Quer dizer, então, que a gente não precisa se preocupar se estamos fazendo escolhas saudáveis? Não, é o oposto disso. Quando você segue o nosso padrão tradicional de alimentação, que inclui, além do arroz com feijão, todos as hortaliças (legumes e verduras), todas as carnes (vermelhas, brancas...), farinhas e farofas, sem falar na feijoada do fim de semana, você já está garantindo todos os nutrientes de que seu corpo precisa, e mais: de forma absolutamente balanceada.
Quando Michael Pollan disse “Coma apenas o que a sua avó reconheceria como comida”, ele estava também dizendo não coma alimentos ultraprocessados. Pollan é de 1955, portanto, estava se referindo aos avós nascidos no começo do século passado, quando ainda não havia a grande indústria alimentícia, que fez com que os americanos acreditassem, anos mais tarde, que cozinhar não era necessário: a comida podia ser comprada pronta e apenas aquecida em casa.
O resultado disso todos nós sabemos. Nos EUA, a situação é muito mais complexa: eles não têm um padrão alimentar tradicional como o nosso. Foram colonizados por ingleses, conhecidos pelos péssimos hábitos alimentares. Por isso estão sempre em busca de uma nova dieta, que possa fazer as vezes de um padrão alimentar. Mas as coisas não são tão simples assim.
Nós temos um padrão alimentar tradicional, que vai além dos aspectos nutricionais. Tem a ver com a nossa cultura, com os nossos hábitos, com a nossa economia. Nós somos mais brasileiros porque temos o arroz com feijão. E apesar de o momento político ser péssimo por aqui, ser brasileiro é uma coisa boa.
Mas afinal, como sei se um alimento é saudável?
Para encerrar o papo de medicalização, é importante dizer o seguinte: não existem alimentos bons ou ruins; existe comida de verdade e comida de mentira. Escolher o que vai comer exclusivamente em função dos benefícios nutricionais que esse ou aquele alimento vai oferecer é medicalizar a comida. É tirar do cardápio o prazer. E abrir espaço para uma relação de inimizade com a comida. É transformar o glúten, e consequentemente o pão, em inimigo. Está errado. Só quem lucra com isso é a grande indústria, que cria produtos para atender ao modismo, apostando que o consumidor não vá perceber que está trocando comida de verdade por alimentos ultraprocessados.
A confusão entre industrializados, ultraprocessados, processados é enorme. Por isso, faço aqui uma menção ao Guia Alimentar para a População Brasileira, documento oficial do país, elogiadíssimo no mundo todo, inclusive pelo próprio Michael Pollan. O Guia foi revolucionário ao revelar às pessoas comuns, aos consumidores, uma nova classificação dos alimentos, mais condizente com os nossos tempos.
Em vez de dizer quantas porções de carboidrato e quantas de proteína temos que ingerir por dia, o Guia ensina a identificar o que é comida de verdade ao dividir os alimentos por grau de processamento. Ou seja, a pessoa não precisa ter feito nutrição para conseguir se alimentar de forma saudável, mas ela precisa saber cozinhar, e aprender a diferenciar comida de verdade de comida de mentira – ou imitação de comida, que é como prefiro chamar os ultraprocessados.
E como faz? Leia o rótulo é a resposta direta. Mas aí o prof. Monteiro, que é também coordenador do Guia, faria uma observação esclarecedora: os melhores alimentos não precisam de rótulo, ou de lista de ingredientes, porque são apenas o alimento, sem nenhum aditivo.
E vou frisar esse ponto: em vez de ficar pirando no que pode e o que não pode, que é o que vai acontecer com quem está chegando agora nessa discussão, pense que, se for comida feita pelas mãos humanas, seguindo o nosso padrão, pode.
De todo modo, faço um resuminho aqui
– In natura e minimamente processados – esse é o grupo do pode tudo. São todas as frutas, hortaliças, grãos, carnes, farinhas, o leite, o café... Eles não têm aditivos na composição. O leite pode ter sido pasteurizado, mas não ganhou ‘aromatizante sabor leite da fazenda’, porque ele ainda é o leite. O arroz foi seco, embalado na fábrica, mas ele é só arroz. É diferente de um produto do tipo risoto pronto, que além do arroz tem na composição gordura hidrogenada, glutamato monossódico, sabor idêntico ao da cebola.
– Ingredientes culinários – são aqueles alimentos que servem para transformar os alimentos do primeiro grupo em comidas gostosas: gorduras, seja óleo, azeite ou manteiga, o sal... Nós não comemos esses alimentos isoladamente, mas usamos para cozinhar. E eles fazem parte de uma alimentação saudável. Note que o problema não é o sal adicionado no preparo dos pratos, mas o sal escondido nos alimentos ultraprocessados, inclusive dos doces.
– Processados – são os pães, as massas, os queijos. Eles fazem parte da nossa alimentação há milhares de anos. E podem continuar fazendo, como complemento. O problema é quando pizza, macarrão e queijo quente viram a base da alimentação. Aí, não dá.
– Ultraprocessados – é aí que o bicho pega. São comidas feitas e temperadas na fábrica com uma série de aditivos químicos, que imitam o sabor da comida de verdade. Talvez a primeira coisa que venha à cabeça sejam os pratos prontos, como lasanha industrializada congelada, nuggets, etc. Mas a lista é longa. E pode passar por alimentos que muita gente escolhe em função de achar que são opções saudáveis, como tantas barrinhas industrializadas. Outros ultraprocessados que fazem parte do dia a dia de muitos brasileiros: refrigerantes, biscoitos recheados, molhos e temperos prontos...
Nesse caso, o segredo realmente é ler o rótulo para fugir dos saborizantes, aromatizantes, corantes, e todos os ‘antes’ que imitam a comida de verdade. Eles podem enganar o seu paladar, mas não enganam a sua saúde.
Note que o problema não são os ingredientes industrializados – tem muita gente fazendo a maior confusão, jurando de pé junto que não come nada industrializado... A grande questão da alimentação moderna é a comida ultraprocessada, que dispensa as preparações caseiras, que vem pronta da fábrica, cheia de aditivos químicos, e que tira a autonomia das pessoas. Será mesmo que você não consegue temperar a própria comida? É claro que consegue. E isso também vai deixar a alimentação mais saudável, porque o arroz nosso de cada dia é feito com cebola, com louro, às vezes com brócolis, com cenoura raladinha. E faz par com o feijão.
Finalmente, à temporada!
Foi assim que nasceu a temporada dos pê-efes do Cozinha Prática, veiculada no primeiro semestre de 2017. Como base, usei a lógica do projeto ‘O Que Tem na Geladeira?’. Queria expandir esse conceito ao público que me assiste na televisão. Afinal, para quem já cozinha no dia a dia – boa parte do nosso público –, o maior desafio é transformar a compra da feira em refeições gostosas. A cada episódio, exploro a versatilidade de uma hortaliça. Geralmente, mostro três receitas com métodos de cozimentos, corte e combinações de sabores diferentes para ilustrar o potencial daquele alimento.
Depois disso, escolho uma das preparações do dia para compor um pê-efe. Sim, vai ter pê-efe em todos os episódios. Isso significa que vou mostrar muitas maneiras de preparar o arroz e o feijão. Tanto do ponto de vista da técnica, como na composição de sabores. A gente se esquecer que, em vez de cebola, dá para refogar o arroz com gengibre no dia que for servir um peixinho.
A temporada é composta por treze episódios. Isso significa que serão treze receitas de arroz, treze sugestões diferentes para preparar o feijão, treze opções de carne, e muito mais do que treze acompanhamentos para formar esses trezes pê-efes.
Além disso tudo, preparei para as redes sociais vários vídeos curtos, mais conceituais, sobre alimentação saudável (de verdade!). Toda semana, abordo um assunto. O timing não poderia ter sido melhor. A discussão foi aberta e, agora, você vai ver na prática como deixar a alimentação mais saudável, de verdade. Mas, acima de tudo, vai ver que é mais simples do que parece.
O Cozinha Prática é uma produção do Estúdio Panelinha.