China: meu prato favorito e impressões de viagem
Por Rita Lobo - 21 de janeiro de 2020
De acordo com o calendário chinês, no próximo sábado, dia 25, começa o ano de 4718. Não é à toa que a culinária chinesa é tão sofisticada: eles tiveram alguns milênios para aperfeiçoar todo tipo de preparação. Até uma singela sopa de tofu, melhor prato que provei numa viagem que fiz no fim do ano passado à China.
Você pode estar pensando, peralá, você foi até o outro lado do mundo e uma sopa de tofu foi o prato mais marcante? Comi pato de Pequim em Pequim e pimenta Sichuan em Sichuan. E mais um montão de preparações incríveis. O prato inesquecível, porém, foi a tal sopa de tofu de Chengdu. Pior: o aspecto também não era interessante e ela ainda foi servida no fim de um banquete de dezenas de pratos deliciosos. Tinha tudo para passar despercebida! Mas foi só dar a primeira colherada para descobrir que aquele caldo esbranquiçado era um forte candidato a melhor comida da viagem.
Apesar de o meu trabalho estar mais próximo da saúde pública do que da gastronomia, pessoalmente, adoro comer em restaurantes estrelados, provar pratos de grandes chefs. Mas não gosto nada de textos gourmetizados sobre sabores de pratos, especialmente quando usam clichês como ‘encantam o paladar’ ou ‘gostinho de infância’. Mesmo assim, vou descrever por que gostei tanto da sopa. Ela era cheia de contrastes muito equilibrados: tinha a leveza do tofu e a intensidade do caldo de galinha, daqueles bem apurados, que ficam horas no fogo; a pungência (e o frescor) da cebolinha e o toque defumado do bacon. Muitas camadas de sabor em um único caldo de aparência leitosa e sem graça. E essa era parte do charme e da riqueza do prato. Era surpreendente, característica que encanta o meu paladar. (Risos.) Curto comida com gostinho de infância (mais risos), mas amo o fator surpresa num prato.
Talvez você esteja imaginando que no fim do nosso papo aqui eu vá tirar da manga a receita para você preparar em casa. Aviso logo: não vou. É muito possível, porém, que numa reunião de pauta qualquer no Panelinha, a combinação de sabores influencie a criação de alguma receita que talvez você vá reproduzir em casa, sem saber que a inspiração veio da sopa de tofu que eu comi na China. Afinal, esse é o meu trabalho: estimular as pessoas a entrar na cozinha, a aprender a cozinhar, a melhorar a alimentação da casa, a ganhar autonomia para fazer melhores escolhas.
A freguesia do Panelinha já sabe e conta com isso. Olha que curioso: nas redes sociais, enquanto eu estava na China, postei uma foto ou outra das refeições. Ninguém perguntou qual foi o meu prato favorito, mas centenas de seguidores deixaram mensagens, torcendo para que eu estivesse ali buscando inspiração para ensinar receitas que eles pudessem preparar em casa, para variar os sabores do dia a dia. E, de fato, depois de 20 anos do site, observando de perto como as pessoas se alimentam, deu para aprender do que a maioria gosta e não gosta – e tenho certeza de que uma sopa de tofu seria um retumbante fracasso de audiência!
Comecei a lembrar disso agora, com o ano novo chinês se aproximando, e fiquei com vontade de contar mais da viagem aqui no meu blog. Na época, não consegui, era muita coisa acontecendo ao mesmo tempo: tinha lançamento do meu livro ‘Só Para Um’, o começo das gravações da temporada do Cozinha Prática (estreia em março, está chegando). Além do mais, a agenda da viagem era de reuniões com grupos de mídia – um roteiro muito interessante para mim, como dona de uma empresa que tem site, editora, a produtora de audiovisual, canal no YouTube e presença forte nas redes sociais, mas bem pouco atraente para um público que está acostumado a me ver ensinado receitas.
Nas redes sociais, o que eu mais mostrei foram fotos da turma da viagem, como a Camila Coutinho (Garotas Estúpidas) e o Kond (Kondzilla), entre outros produtores de conteúdo. Veja aqui todo mundo que estava no grupo.
A viagem, organizada pelo Ronaldo Lemos (que veio cozinhar comigo no Cozinha Prática a quatro mãos) e seus sócios da 798 Ventures, teve o apoio da Associação para Amizade do Povo Chinês com o Estrangeiro.
O objetivo era estimular a produção de conteúdo entre os dois países. Mas, entre uma reunião e outra, consegui observar um pouco das diferenças e também das similaridades entre a alimentação chinesa e a brasileira. E, logo de cara, o que me chamou a atenção foi a própria estrutura das refeições.
No Ocidente como um todo, seguimos um padrão europeu e as refeições são formadas por basicamente três etapas: uma entrada, seguida de prato principal e sobremesa para finalizar. Aceita um cafezinho? Claro que isso pode variar. Já na China, em nenhum dos 13 almoços e jantares que fiz, uma sobremesa foi sequer oferecida. Nem mesmo frutas. Eles não têm o hábito de comer doces! Se você for a um shopping center, vai encontrar um carrinho de sorvetes na praça de alimentação. Mas não faz parte do padrão alimentar tradicional comer sobremesa, como temos o costume no Ocidente, depois do almoço ou do jantar. Ou melhor, por lá, o doce está inserido na refeição: entre os vários pratos, alguns são agridoces – o açúcar aparece na forma de tempero. Banana caramelada, acho, é comida chinesa com escala nos Estados Unidos.
Leite e derivados não fazem parte da dieta: não tem queijo, nem iogurte, nem manteiga. E, segundo uma conhecida chinesa que morou no Brasil, e tem uma filha de 3 anos, a qualidade do leite na China não se compara à do leite brasileiro (o de lá parece água).
Tem arroz, muito. Hortaliças são bem variadas. A carne é sempre cortadinha – não vi um bife sequer! Come-se muito peixe e frutos do mar. Em todas as refeições, comi fritura. E também alimentos cozidos no vapor. Quase não tem pão. Tem bao. Mas, aqui entre nós, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. (É que pão para mim é do tipo italiano, com casca dura e miolo azedinho da fermentação natural. Mas aí é uma questão de gosto, eu sei.) Ah, e água pode ser em temperatura ambiente, ou quente. Inclusive a que você pega no bebedor.
E tem a melhor refeição do dia: o café da manhã. Eu amo café da manhã dos campeões em qualquer língua. E não sou nada apegada à tradição pão, frutas, ovos, cereais. Quando vou para algum destino no Oriente me delicio com caldos, cogumelos, peixes, folhas verde-escuras e tudo mais que faz o café da manhã parecer um jantar para os ocidentais. A única coisa de que não consigo abrir mão, mais por vício do que por gosto, é tomar café. Não me venha com chazinho às sete da manhã!
Em termos epidemiológicos, um estudo de 2018 detectou que há duas dietas predominantes no China: a tradicional, baseada em arroz, soja, tubérculos, hortaliças, frutas e diferentes tipos de carnes e ovo; e a ocidentalizada, que inclui doces, snacks, bebidas adoçadas, castanhas. Esta última tem invadido os grandes centros e, de acordo com a pesquisa que acompanhou índices de saúde entre crianças de 6 a 17 anos, as que seguem a dieta tradicional são mais saudáveis.
Isso é igual na China e no Brasil: os dois países têm padrões alimentares tradicionais balanceados nutricionalmente. Mais do que isso: a alimentação faz parte da cultura.
Há muitos anos, mais especificamente há 30 anos, fui para o Japão pela primeira vez. Quando vi no hotel que o bufê de café da manhã não tinha pão, nem frutas, nem iogurte, fiquei chocada. Eu sabia que a comida japonesa era diferente, porque em São Paulo estamos acostumados a comer sushi e sashimi desde criança – restaurantes japoneses fazem parte da gastronomia paulistana. Mas eu não estava preparada para comer peixe, arroz e verduras no café da manhã. Essa experiência, anos depois, foi fundamental para que eu entendesse o conceito e a importância dos padrões alimentares tradicionais.
O que deixa a alimentação saudável não é um ou outro alimento, mas a forma como vários deles são combinados. A dieta mediterrânea não é melhor que a brasileira ou que a chinesa, ela é mais adequada para quem vive na região do Mediterrâneo, porque combina de forma balanceada os alimentos abundantes na área – e, claro, leva em consideração os hábitos, a cultura que foi se formando ao redor da mesa.
Na China e no Brasil, os ultraprocessados estão ameaçando os padrões tradicionais de alimentação e, com isso, piorando a saúde da população. Assim como no ocidente, nos centros urbanos chineses, os índices de obesidade e doenças relacionadas à má alimentação também estão começando a crescer. Apesar de os nossos hábitos alimentares serem tão diferentes, a nossa relação com a comida é igual. E é diferente da de países como a Inglaterra e os Estados Unidos, onde não há um padrão tradicional saudável. Talvez a China e o Brasil estejam mais próximos do que parece: os dois países precisam valorizar a própria comida. Quem sabe isso é assunto de pesquisa para uma próxima viagem... E aí, #TimeChina, vamos?