Tudo se ilumina
Por Rita Lobo - 20 de maio de 2007
Alcatéia, como você sabe, é o coletivo de lobo. Para mim, porém, e possivelmente para os meus quase vinte primos-irmãos, é o nome da casa de praia do meu avô Lobo. Na infância, férias de verão eram passadas lá. E a casa ficava sempre lotada. Pais, irmãos, tios, primos. Às cinco da tarde, ainda tinha invasão dos amigos da praia. Era a hora do lanche: bolo saindo do forno e suco fresquinho para as crianças, verdes de fome depois de um dia todo no mar, e café passado na hora para os adultos. O sol se punha, mas o dia não acabava. Tinha banho, que era sempre uma festa no banheiro das meninas, jantar - adultos e crianças na mesma mesa - e, depois, sala de jogos. Banco Imobiliário era disputadíssimo, mas havia uma estante lotada de livros para aqueles que conseguiam ler apesar do barulho. Havia também aqueles que, apesar do barulho e da vontade de jogar, adormeciam sobre a mesa forrada de feltro verde. Talvez por ter crescido fazendo parte de uma alcatéia, nunca entendi muito bem essas pessoas que precisam de um tempo ou um espaço só para elas. Ou será que eu faço parte do grupo de pessoas que não conseguem ficar sozinhas? (Por escrito isso soa muito mal, mas não é tão ruim assim.) Este fim de semana, porém, meu marido queria viajar, e eu tinha que trabalhar no sábado. Ele foi com as crianças para a praia. E eu resolvi que iria aproveitar o domingo para descansar.
Não é a primeira vez que minha família viaja e eu fico, mas é sempre estranho entrar numa versão silenciosa da minha casa. No sábado, depois da degustação que fizemos no Estúdio, voltei para casa decidida a não tocar no computador nem deixar o santo baixar e sair organizando todos os armários do apartamento. Apenas liguei o som, um pouco mais alto que o de praxe (não temia acordar as crianças), e fiquei sentada na poltrona da sala, olhando para a minha estante de livros. Foi difícil me conter para não arrumá-la. Os livros estão organizados de uma maneira que só eu entendo. Livros comprados em Londres, em 1995 (ano em que me formei, por isso, um certo apego e a necessidade de agrupá-los dessa maneira). Cozinha árabe, cozinha italiana, mas espera um pouco... E os livros da Marcella Hazan? Eles são de cozinha italiana. Pois é, mas estão na seção de autores favoritos. Até eu me perco. Nesta mesma seção, está Nina Horta e Jonathan Safran Foer. Não, ele não publicou um livro de culinária. É literatura pura. Mas é um autor favorito. Outro dia. Outro dia eu arrumo esses livros.
Aos poucos, comecei a relaxar e fiquei observando os meus livros e pensando nas histórias. Não nas contidas nas páginas deles, mas nas que cada um daqueles livros me fazia lembrar. Passo os olhos em Fundamentals for menu planning e estou no salão do meu extinto restaurante. Um senhor muito educado me chama à mesa. Quer me cumprimentar. “Chef, nunca comi nada parecido, isto não é um frango, isto é uma ave!” E, desde então, Patrícia, minha sócia no restaurante, e eu passamos a usar variações da frase. Quando ela trocou de carro: “Isto não é carro, é um automóvel!”
Tudo se ilumina me traz à memória um momento libertador, o de descobrir as próprias raízes. Logo depois de ir para a Hungria, país de origem da minha avó, o livro pousou em minhas mãos, como uma borboleta. E as histórias se misturam na minha cabeça.
O livro de receitas do Celeiro rememora a minha primeira gravidez. Queria me alimentar da maneira mais natural e saudável possível. O livro não saía da minha cozinha. E o Gabriel na minha barriga me fazia tão plena.
Aos poucos, minha mente começou a relaxar e a estante de livros não era mais uma ameaça de como a minha vida deveria ser. Eles não estão organizados do jeito que eu faria hoje. Por outro lado, estão numa estante que mandei fazer especialmente para eles (e como eu sonhei com este móvel!). Naquele momento, senti uma flechada de prazer. É bom poder desfrutar da minha vida exatamente como ela é. É curioso não pensar em como eu gostaria que ela fosse. Fiquei feliz. Fiquei aliviada por sentir que, apesar de fazer parte de uma alcatéia, eu também posso aproveitar meu tempo e meu espaço sozinha.
Não é a primeira vez que minha família viaja e eu fico, mas é sempre estranho entrar numa versão silenciosa da minha casa. No sábado, depois da degustação que fizemos no Estúdio, voltei para casa decidida a não tocar no computador nem deixar o santo baixar e sair organizando todos os armários do apartamento. Apenas liguei o som, um pouco mais alto que o de praxe (não temia acordar as crianças), e fiquei sentada na poltrona da sala, olhando para a minha estante de livros. Foi difícil me conter para não arrumá-la. Os livros estão organizados de uma maneira que só eu entendo. Livros comprados em Londres, em 1995 (ano em que me formei, por isso, um certo apego e a necessidade de agrupá-los dessa maneira). Cozinha árabe, cozinha italiana, mas espera um pouco... E os livros da Marcella Hazan? Eles são de cozinha italiana. Pois é, mas estão na seção de autores favoritos. Até eu me perco. Nesta mesma seção, está Nina Horta e Jonathan Safran Foer. Não, ele não publicou um livro de culinária. É literatura pura. Mas é um autor favorito. Outro dia. Outro dia eu arrumo esses livros.
Aos poucos, comecei a relaxar e fiquei observando os meus livros e pensando nas histórias. Não nas contidas nas páginas deles, mas nas que cada um daqueles livros me fazia lembrar. Passo os olhos em Fundamentals for menu planning e estou no salão do meu extinto restaurante. Um senhor muito educado me chama à mesa. Quer me cumprimentar. “Chef, nunca comi nada parecido, isto não é um frango, isto é uma ave!” E, desde então, Patrícia, minha sócia no restaurante, e eu passamos a usar variações da frase. Quando ela trocou de carro: “Isto não é carro, é um automóvel!”
Tudo se ilumina me traz à memória um momento libertador, o de descobrir as próprias raízes. Logo depois de ir para a Hungria, país de origem da minha avó, o livro pousou em minhas mãos, como uma borboleta. E as histórias se misturam na minha cabeça.
O livro de receitas do Celeiro rememora a minha primeira gravidez. Queria me alimentar da maneira mais natural e saudável possível. O livro não saía da minha cozinha. E o Gabriel na minha barriga me fazia tão plena.
Aos poucos, minha mente começou a relaxar e a estante de livros não era mais uma ameaça de como a minha vida deveria ser. Eles não estão organizados do jeito que eu faria hoje. Por outro lado, estão numa estante que mandei fazer especialmente para eles (e como eu sonhei com este móvel!). Naquele momento, senti uma flechada de prazer. É bom poder desfrutar da minha vida exatamente como ela é. É curioso não pensar em como eu gostaria que ela fosse. Fiquei feliz. Fiquei aliviada por sentir que, apesar de fazer parte de uma alcatéia, eu também posso aproveitar meu tempo e meu espaço sozinha.