Pensamento derretido
Por Rita Lobo - 22 de junho de 2008
Não tenho escrito muito sobre o prazer de cozinhar. Este é o assunto de hoje. De cozinhar e de comer. E vai ser fácil. O ingrediente é chocolate.
Na semana passada, uma amiga me pediu para ajudá-la a fazer um almoço para 15 pessoas. Era coisa rápida. Uma entrada, um prato principal e uma sobremesa. Para mim, a sobremesa. Eu adoro a musse de chocolate preto e branco aqui do site. Não me lembro de ter comido musse melhor. E decidi prepará-la no dia anterior. (Ela fica melhor dormida na geladeira.)
Tarde da noite, lá fui eu para a cozinha. Banho-maria para derreter o chocolate, uma dúzia de gemas na batedeira formavam uma gemada cremosa, xícaras e colheres para não errar a medida dos ingredientes, que foram multiplicados por três. Salvo o conhaque, um pouco mais generoso. Noite fria, casa já silenciosa, crianças dormindo, a babá fechada no quarto dela para se concentrar na trama da novela. (Aliás, agora eu também tenho a minha novela: é a série diária Em Terapia, que passa na HBO, mas isso é assunto para outra hora. Não perdi um episódio sequer, acredita?)
A receita não é difícil, mas requer alguma destreza. E suja várias tigelas, espátula, batedor, batedeira... Basicamente, é preciso fazer uma gemada, derreter chocolate meio amargo, bater creme de leite e parar antes de virar chantilly, derreter manteiga e misturar com cacau em pó e com conhaque (tomar um golinho de conhaque, na minha opinião, também faz parte do preparo), fazer um pouco de raspas e muitos cubinhos de chocolate branco e, depois, misturar tudo. Na minha casa, não é receita para o dia-a-dia. Definitivamente. Frutas e olhe lá.
Transferi a mistura para um tigelão de vidro e coloquei na geladeira. Fechei a porta, virei para a bancada e vi que ela estava rindo da minha cara. Nem era muita bagunça, mas ela sabe que sempre tem alguém para me auxiliar. Não era o caso. E a bancada gargalhava. Achou que eu não saberia deixar a cozinha brilhando novamente. Tola.
Primeiro a tigela onde os ingredientes foram misturados. Uma espátula e, lentamente, fui lambendo todo o resto de musse que consegui. As pás da batedeira, a panela do banho-maria, a tábua e a faca que cortou o chocolate, todo mundo para o banho, com a mesma firmeza que falo com os meus filhos. Bucha na mão, detergente e, item por item, fui lavando confiante os utensílios que me ajudaram no preparo da musse.
À medida que a água da torneira escorria, os pensamentos iam se soltando do meu corpo, concentrado na limpeza. Palavras, pessoas, conexões, idéias, personagens, tudo fluía, feito chocolate derretido. O cansaço do dia deu lugar à leveza do raciocínio solto. Pensei na Noélia, cozinheira de casa: o que será que passa pela cabeça dela quando está na frente da pia?
Pano úmido no chão, guardei o rodo e coloquei a chaleira no fogo. Uma ducha rápida e eu estava pronta para dormir. Acabei não falando exatamente do prazer de cozinhar. Ou de comer. Mas limpar bagunça de chocolate também é bom. E a musse é um sucesso.