O livro das vidas

O livro das vidas
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Por Rita Lobo - 08 de fevereiro de 2008


Sobre a mesa do meu escritório estava um envelope branco, com o meu endereço escrito à mão. Dentro dele havia um livro preto, e dentro do livro um bilhete amarelo. O subtítulo do livro explica que se trata de uma seleção de obituários do New York Times. O bilhete era do organizador da obra e, também, coordenador da Coleção Jornalismo Literário, da Companhia da Letras, a qual o volume pertence. No bilhete, Matinas Suzuki Jr. sugere que eu leia um texto específico e lembra que a tradução da receita de cheesecake, que ele me pediu para fazer, era para um dos obituários. (Era de um tal Harry Rosen, “fundador do Junior’s Restaurant, estabelecimento do Brooklyn famoso pelo cheesecake”, que morreu mas não levou a receita para o túmulo.)

Os textos são primorosos. O livro é brilhante, desses que a gente pega para dar uma folheada e não consegue mais parar de ler. E, contrariamente ao que se possa pensar, não é mórbido ou deprimente. De forma surpreendente, o livro faz pensar sobre a própria vida, além de proporcionar uma leitura de primeira.

Por uma dessas coisas da vida, bem ao lado do envelope, sobre a minha mesa de trabalho, está uma página do Caderno 2, do jornal Estado de S.Paulo. Não se trata da seção de obituários, mas o título da nota é: “A morte do violonista Antônio Rago”. E o texto diz: “Morreu na quinta-feira, em São Paulo, aos 91 anos, o violonista Antônio Rago, autor de mais de 400 composições e um dos responsáveis pela introdução do violão elétrico no Brasil.”

A nota continua dizendo que o corpo foi cremado, que ele estava internado desde novembro, que era filho de italianos, e assim vai. Mas, naturalmente, a nota não conta que ele viveu uma vida bem vivida, que sempre fez o que quis, que passou a vida tocando o seu violão e, talvez, por isso, tenha sido uma pessoa tão feliz.

A nota diz que ele nasceu na Bela Vista, mas não explica que, apesar de ter se mudado de lá ainda jovem, sempre sentiu-se em casa no Bixiga. E era lá que ele, religiosamente, encontrava os amigos para almoçar aos domingos. Era lá também que ele comprava pão italiano, nhoque, vinho, pernil assado, apesar dos dotes culinários da esposa, que, mesmo sendo húngara de nascimento, especializou-se na culinária italiana por causa dele. E, obviamente, a nota não termina dizendo que, além de Julia, esposa por 62 anos, Antônio Rago deixa três filhos, Elisabeth, Margareth e Antônio, seis netos, Marina, Laura, Mariana, Guilherme, Fábio e eu.

Talvez pelo fato do meu avô ter morrido há tão pouco tempo, O livro das vidas, assim como os mortos, pareça melhor do que de fato ele é. Mas eu duvido. Assim como tenho minhas dúvida se algum dia vou conhecer alguém tão alegre quanto era o meu avô Rago.