Morangos flambados

Morangos flambados
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Por Rita Lobo - 31 de julho de 2009


No supermercado aqui da esquina os morangos estão cada vez maiores. E, além de gigantes, a plaquinha escrita à mão indica que são bem doces. Bem grandes e bem doces, então. Comprei. É verdade, são doces, são grandes, mas no meio da caixa tem uns que não estão mais tão fresquinhos. Estão bons. Mas não estão no auge da carreira de um morango “bem grande e bem doce”. Pois bem, para o lixo eles não vão. Vão para a panela.

Ando com vontade de flambar. Acho que é o espírito de uma cozinheira da década de 1970 querendo reviver em mim. E ela tem conseguido. Graças aos morangos do meio da caixa, nem tão grandes nem tão doces nem tão fresquinhos. Então ela, a cozinheira que mora dentro de mim, pega uma frigideira alta, bem arredondada, uma prima da panela wok, e coloca sobre a chama média do fogão. Em seguida, vai um naco de manteiga, bem generoso, como eram os nacos de manteiga na época em que ela estava no auge, como os morangos do topo da caixa. Mas, antes de colocar na panela, ela lavou e cortou os frutos em metades. Mais do que somente aqueles do meio da caixa. Ela calculou um punhado por pessoa. Eram quatro pessoas. Ela usou a caixa inteira! Aqueles murchinhos do centro foram só uma desculpa porque ela queria flambar. Ela também espremeu uma laranja, separou o açúcar e a vodca. Agora sim: panela no fogo, manteiga espumando, lá se foram os morangos, todos eles, como se fossem iguais, farinha do mesmo saco.

Ai, lembrei uma história muito engraçada, porém um pouco triste. Um amigo italiano foi estudar em Nova York. Conheceu uma indiana, começaram a namorar. Alguns meses se passaram e ele resolveu pedi-la em casamento. Quanta alegria! Decidiram celebrar com duas festas: uma do jeito indiano, em Nova York, e a outra na igreja do alto da montanha da cidadezinha na Itália onde ele nasceu. O bisavô havia se casado lá, o avô tinha sido batizado lá, o pai, a mãe, a irmã e ele também. Era praticamente uma igreja da família. Dia do casamento. A cidade inteira do lado direito da nave. Do outro lado, familiares da noiva e um ou outro amigo que visitava a cidade pela primeira, e provavelmente pela última vez, especialmente para a data. O padre, com aquela voz de padre e jeito de padre falar, só que em italiano de verdade, começou a dizer: “Estamos aqui reunidos para celebrar...” Disse tudo o que se espera que um padre diga na data que comemora a união de duas pessoas que se amam. O lado de lá da igreja olhava com certa estranheza para o lado de cá. Indianos e americanos, só em filme. Para alguns, nem em filme. O padre então resolve opinar: “É, segundo Ele, somos todos irmãos, iguais aos olhos de Deus; pessoalmente, acho isso um exagero”.

Aqueles que estavam com suas mentes voando com os anjos que plainavam sobre o altar logo voltaram à terra tamanho foi o estrondo: a noiva caiu dura, estatelada, desmaiou, coincidentemente ou não, depois do comentário do padre. Os fiéis, e os nem tanto, e também os nada fiéis logo fizeram coro de susto. E o coral, talvez treinado para contornar as reações que o padre costuma provocar, começou logo com a Ave Maria.

Longa história, muito longa. Mas os morangos na panela, tão diferentes uns dos outros, e ao mesmo tempo, apenas morangos, fizeram com que eu me lembrasse dela. Viagem. Como viajam os cozinheiros quando estão conversando com suas panelas.

A receita. Voltemos, irmãos, à receita. Morangos lavados e partidos foram para uma frigideira alta com um bom naco de manteiga. Lembra? Depois um pouco de açúcar foi polvilhado sobre os morangos. Só para temperar. Como se fosse sal. Mexe e remexe e lá vai a vodca. Meia xícara, talvez? A cozinheira que tem prática só vira um pouco a frigideira e faz a chama do fogão encontrar com a vodca e, de repente, tudo vira mágica aos olhos de uma criança de sete anos. Ah, sim, crianças podem comer comida flambada porque o álcool evapora. Mas se o cozinheiro a flambar não tem assim tanto jeito, pode afastar um pouco a frigideira do fogo, pegar um pouco da vodca com uma colher de sopa e passar pelo fogo; a colher fica em chamas e vai para a panela, que volta, queimando, para a boca de dragão do fogão. Os morangos ficam flambando até que a chama se apague.

Para muitos, a receita termina aí. Mas a cozinheira gosta de um pouco mais de caldinho. Ela acrescenta o suco de uma laranja e deixa cozinhar até engrossar um pouco. Em quatro tigelinhas, ela divide os morangos e a calda que se formou. Um pouco de creme de leite fresco e levemente batido sempre vai bem.

Tudo pronto, todos à mesa, eis que surge o coral. Estão prontos para começar. Um ao lado do outro, todos vestidos de branco, ao redor da mesa, só esperando a deixa: uma pitada de pimenta-do-reino, moída na hora. O padre condenaria; uma especiaria vinda justamente da Índia se misturando com um nobre fruto europeu. Mas a cozinheira sabe que a graça pode estar em combinações nada conservadoras. Sim, um pouquinho de pimenta-do-reino deixa o morango ainda mais saboroso. Mas isso todos os cozinheiros já sabem. Os comensais, não. O morango vai para boca, e o coral começa a cantar. Ave Maria.