Lamúrias

Lamúrias
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Por Rita Lobo - 06 de março de 2007


Vou poupar você das minhas lamúrias. Todo mundo sabe o que significa começar o dia com o pé esquerdo – salvo os canhotos, imagino. O fato é que, domingo, estava me sentindo na lama. E, nesses casos, não há outra alternativa, o jeito é chafurdar (mas é conveniente mentalizar que a lama é a do Mar Morto para que a pele acredite que irá se beneficiar dos efeitos terapêuticos dos minerais que vêm de lá). O dia passou e o meu humor não melhorou. Nem a minha pele. Para encerrar a noite, decidi começar a ler um livro. Na pior em Paris e Londres me pareceu a melhor opção. Ganhei de presente de um querido amigo. Sabia que o livro era bom, mas estava esperando o momento mais adequado para levá-lo da estante para o criado-mudo. O subtítulo diz que é sobre a vida de miséria e vagabundagem de um jovem escritor no fim dos anos 1920. E o escritor é George Orwell, o mesmo de A revolução dos bichos. Os primeiros capítulos me trouxeram enorme satisfação. É um conforto ler sobre a lama dos outros. Por outro lado, é revoltante saber que, mesmo na pior, a insanidade não dominou o autor. Depois de umas 50 páginas, adormeci.

Segunda foi um dia estranho. Previsivelmente estranho. I don't care if Monday's blue. Tuesday's grey and Wednesday too. A música da adolescência não sai da minha cabeça. Que tortura! The Cure, aliás, é a lama em forma de banda. O dia passou e, antes das seis da tarde, resolvi que estava na hora de buscar a minha salvação. Desliguei o computador e fui para casa pular no colo das crianças. Gabriel e Roberto, meu filho e meu marido, estavam jogando videogame. Nenhum dos dois notou a minha presença. Mas Dora, a minha Dora, se jogou nos meus braços. “Vamos passear, Dorinha?” Ela respondeu que iria buscar a bolsa rosa. Fomos andando até a cafeteria e tomamos um suco. Já estava muito tarde para eu tomar café. O dia foi escurecendo e o brilho do cabelo loiro da Dora foi clareando os meus pensamentos. Lembrei que o vizinho do terceiro andar havia nos convidado para o lançamento de seu CD no bar onde ele canta às segundas. Com muita lábia, convenci o meu marido a lagar o videogame e me acompanhar no lançamento.

Às segundas, o nosso vizinho canta standards. All the great american songs. E, aos sábados pela manhã, assobia tango pela janela. Durante o resto da semana, é joalheiro. Faz sucesso desde a década de 1970 com suas correntes de prata e pulseiras de rabo de elefante. Tem lojas em São Paulo, no Rio, em Brasília e Saint-Tropez – ele conta que está animadíssimo porque vai cantar por lá e já está treinando o repertório francês.

Beijo as crianças, passo batom, puxo o Roberto e me despeço das empregadas. Gabriel pergunta aonde vamos, e depois quer saber por que o vizinho é um guerreiro. “É o nome dele, filho, ele se chama Guerreiro.”

Guerreiro canta no Alucci Alucci. A casa está lotada. O garçom passa e nos oferece champanhe. Aceno de longe para o astro da noite. Ele me oferece uma música. Eu acompanho a letra em pensamento. Outro garçom serve caldinho de feijão em copos de pinga. Que delícia! É temperado com coentro picadinho. Na travessa, passam uns rolinhos de queijo de cabra. Outra delícia. Vejo a chef Edir Nascimento circulando pelo salão. Aproveito para perguntar que massa é aquela que envolve o queijo. Ela abre um sorriso de orelha a orelha, “você gostou?”. Adorei, Edir. “É massa de rolinho primavera que, em vez de frita, asso no forno.”

Aliás, os dois livros da chef, O banquete dos sentidos I e II, são muito bons.

Guerreiro faz uma pequena pausa e aproveito para pegar o meu autógrafo. “Quero o meu CD autografado!” Ele escreve uma dedicatória e volta para o palco. Roberto pergunta se vamos jantar. Vamos? “Já que estamos aqui, que tal cruzar a rua e ir ao Fasano?”, diz ele. “Que ótimo”, penso. Nada mal, para quem passou o dia na lama, terminar a noite no Fasano!