Canibais literários
Por Rita Lobo - 09 de julho de 2007
Os índios tupinambás eram canibais. Mas a carne humana não era apenas alimento para o corpo. Na época de desova das tainhas, os índios pescavam aos milhares o peixe que migrava das águas frias do mar do sul para os manguezais do litoral norte. Depois, secavam a carne de tainha ao sol e, socando, faziam dela uma farinha que serviria de alimento para um exército de índios, durante os três dias de viagem até São Vicente. Lá, atacavam os tupiniquins, a tribo inimiga. Os índios capturados eram o prato principal da viagem de volta. Era o alimento do corpo. Mas não somente. Eles acreditavam comer também a força e a valentia do inimigo.
Borrachudos que vivem entre Ubatuba e Parati, ora terra exclusiva dos tupinambás, também são canibais. Digo isso sentindo na pele. Acham que pele branca é pele inimiga. Ou gostam de cheirinho de leite. Uma vez, no Japão, comentei com uma amiga que eu sentia cheiro de peixe no metrô lotado. Ela respondeu que para eles, japoneses, um ambiente fechado cheio de ocidentais cheira a leite. Somos o que comemos. E cheiramos ao que comemos. Não sei bem o que os borrachudos querem de mim, além do sangue com cheiro de leite. Vim passar uns dias na praia justamente porque estava sem forças. Mas eles não perceberam e continuam me picando.
Na sexta-feira à noite, fui me alimentar na Flip, a Festa Literária Internacional de Parati, que tem no nome a sua essência: é mesmo uma festa. E lotada! Na Tenda dos Autores, à mesa, Nadine Gordimer e Amós Oz. Ela, sul-africana; ele, israelense. Ambos vozes importantes dos conflitos de seus paises. Ele diz que a comédia e a tragédia são janelas da mesma paisagem. Está falando sobre a questão dos judeus e dos palestinos em Israel. Mas faço um mergulho rápido em busca da graça nas minhas pequenas tragédias imediatas. O mediador do debate conta que Amós lutou em duas guerras, mas nunca escreveu sobre o campo de batalha. O autor diz que já tentou – e promete continuar tentando –, mas não garante que um dia irá conseguir colocar em palavras algo que não há nada de familiar, para ninguém, nem mesmo para quem já esteve em uma guerra. Mas comprova a sua teoria das janelas, contando uma historinha. Na primeira vez que ficou frente a frente com uma tropa inimiga, e viu as armas apontadas em sua direção e na de seus homens, sua reação não foi a de atirar, ou de sair correndo, mas a de chamar a polícia. A platéia ri e aplaude. Ele conta que mora a 5 minutos do deserto. Às seis da manhã, começa o dia com uma caminhada. Andar pelo deserto o faz refletir sobre a importância das coisas e ajuda a colocar tudo em perspectiva. Quando chega em casa, ele liga o rádio e ouve no noticiário políticos dizendo palavras, como nunca, jamais, nunca mais e pensa: as pedras do deserto devem estar rindo deles! Volto para a minha viagem e avalio: talvez, colocadas em perspectiva, as pequenas ou até as grandes tragédias pessoais possam mesmo ganhar uma versão cômica. Olho ao redor e suspeito que, como eu, aquelas 799 outras pessoas da platéia são ali tupinambás, tentando extrair dos autores um pouco de força e de valentia para enfrentar os próprios conflitos. Ou simplesmente gostam de cheirinho de leite.