Bookshelf
Por Rita Lobo - 30 de outubro de 2008
Logo depois que eu nasci, meus pais se mudaram para os EUA. Período curto, apenas para a conclusão dos estudos de meu pai. Eu era um bebê de 2 meses. Meu irmão, Fábio, um garoto de 4 anos. O Gui ainda não existia. E lá fomos nós. Não me lembro de absolutamente nada (e se alguém disser que tem lembranças de quando tinha menos de um ano de idade, sinto em dizer, não acredito).
Hoje resolvi dar uma mexida na minha estante de livros. Comprei alguns novos, ganhei outros, e todos estavam empilhados na minha mesa. Puxei o Better Homes and Gardens New Cook Book, talvez o primeiro livro de culinária comprado pela família recém-chegada ao estrangeiro. De dentro dele, cópias xerox, bem amareladas, saíram voando. Peguei os papéis do chão e, para minha surpresa, reconheci de imediato a caligrafia das anotações. As diversas cores – caneta azul, vermelha, lápis grafite – indicavam o uso recorrente das páginas e, conseqüentemente, das receitas. Era a letra do meu pai, matemático, que parece escrever com números. Fácil de reconhecer.
Fast salads ideas é a seção mais rabiscada. Avocado-cranberry salad, cheese-peach salad, beet-topped lettuce. Parece que era isso que os meus pais comiam quando queriam uma saladinha rápida. Ah, Waldorf salad também tem uma marcação. Depois vêm saladas com frutas: abacaxi com cenoura; uva-passa e maionese; salada de laranja para o inverno. Mas as anotações indicam que a campeã era a Avocado bowl. Endive, que na década de 1970 não tinha nem o cheiro no Brasil, causou enorme estranheza. Será chicória ou escarola?, pergunta-se meu pai. Grapefruite, não esquecer de comprar. Pomegranate seeds, sementes de romã. E assim vai. Além dos ingredientes diferentes, havia também os termos culinários. Apesar de falar bem inglês, acho que não estava familiarizado eles. Dash é pitada, sprinkle é salpicar. Tudo anotadinho.
Fiquei tentando juntar a figura do meu pai hoje, um senhor, cheio de qualidades, mas que não pega nem um copo de água na cozinha, com esse rapaz, que fazia anotações nas receitas, provavelmente levava aquelas páginas para o supermercado, como se fosse uma lista de compras, devia ajudar a minha mãe com os afazeres domésticos e, quem sabe, fazia uma ou outra receita, mesmo que fosse uma “idéia de salada rápida”.
Naquele ano, meus pais eram alguns anos mais novos do que eu hoje. Com essas velhas folhas de papel nas mãos, por alguns instantes, estamos todos na mesma cozinha, uma cozinha de que não me lembro, com aspectos dos meus pais que, talvez, eu não tenha conhecido. Neste momento, temos todos a mesma idade. Podemos falar de igual para igual. Mas eu nem sei sobre o que conversar.
Ligo para o meu pai. Temos que falar sobre alguns assuntos esta manhã. Ele está me auxiliando na conclusão de um negócio. Rapidamente a imagem do jovem na cozinha vai embora. É com o senhor experiente que falo. Terminamos a conversa. Antes de desligar ele me pergunta: Você sabe a diferença entre depressão e recessão, né? Recessão é quando o vizinho está desempregado, depressão é quando eu estou desempregado. Acho que me enganei, o garoto dentro dele estava aí o tempo todo.