Aromas de Casablanca
Por Rita Lobo - 17 de novembro de 2009
No começo do mês, minha Dora fez aniversário. Ela ganhou bolo, brigadeiro, a visita de parentes e amigos e também alguns presentes. Como mãe da aniversariante, ganhei um livro. E o Gabriel, por ser irmão, ganhou outro.
Um pouco antes da hora de dormir, a minha cama virou um ringue. “Hoje a mamãe vai ler o meu livro”, dizia um. “Não, o meu”, berrava o outro. Decidi colocar um fim na luta. “Quer saber, cada um vai ler o seu, ou melhor, se quiserem, escolham se leio o meu livro em voz alta ou voz baixa.”
Os dois ficaram quietinhos, pensaram sobre o assunto, trocaram olhares e o Gabriel respondeu, “pode ler em voz média, mãe”. Caí na risada e tentei explicar que ler em voz baixa significa ler em silêncio. Mas não houve jeito: eles me convenceram de que ler em voz baixa significa ler sussurrando.
Li a primeira página de A Casa do Califa em voz média. Mas a modulação deve ter sido tão suave que no fim do capítulo as crianças já estavam sonhando com carneirinhos marroquinos. Eu só consegui largar o livro por nocaute. O sono me derrubou depois de umas cinquenta páginas. Foi o suficiente para saber que Tahir Shah, autor inglês de origem afegã, estava sufocado pelo tom cinzento de Londres, e sentia-se miserável no pequeno apartamento em que vivia com Rachana, sua mulher grávida de um menino, e a pequena Ariane. Ele queria encontrar uma terra onde as crianças pudessem conhecer o significado de honra e orgulho; queria deixar para traz os pseudo-amigos e o aprisionamento dos compromissos sociais desnecessários; e também sonhava em morar numa casa com dimensões respeitáveis. Queria provar que a vida era bem maior do que as quatro paredes da sala daquele apartamento.
Ainda criança, o autor passava férias no Marrocos com os pais. “Foi uma fonte de cor para minha higienizada infância inglesa”, ele diz ao listar alguns dos motivos pelos quais escolhe o norte da África para morar. Tahir e a mulher investem todo o dinheiro que tem numa mansão em ruínas em Casablanca, e na reforma da casa, que acaba levando cerca de um ano.
A questão da reforma, naturalmente, me trouxe muito interesse, uma vez que acabo de concluir a reforma dentro das minhas quatro paredes em São Paulo. Mas não foi exatamente esse o motivo pelo qual não consegui mais desgrudar do livro.
Como os bons cadernos de viagem, ele oferece uma porta para uma viagem interna, uma reflexão sobre as próprias crenças, valores, sobre o equilíbrio entre tentar dominar a vida e ser dominado por ela. Mas isso pode ser apenas uma viagem de minha parte. O que interessa aqui para nós é comida. E apesar de não ser um livro de culinária ou gastronomia, ele é recheado de sabores marroquinos.
Cuscuz, tagines, cordeiro, bastilla, abóboras ensopadas, chá de hortelã, café preto feito piche. Dez dias depois do aniversário do Dora, terminei de ler A Casa do Califa. Mas a vontade de sentir um pouco dos sabores marroquinos não passou.
Há muitos anos, fui passar uma semana no Marrocos. A semana durou quinze dias, depois um mês, depois mais alguns dias. As cores dos mercados, os aromas das cidades, a variedade das cerâmicas, os tapetes, bandejas, tudo para mim era fascinante. No início, achava um constrangimento ter de oferecer metade do preço sugerido para comprar um simples copo de chá. Rapidamente, percebi que constrangimento maior, quase uma ofensa, era não barganhar. Foi um aprendizado divertido. Voltei carregada para casa, apaixonada pelos novos objetos. Mas, acima de tudo, encantada com a culinária local.
No meu primeiro livro, Cozinha de estar, escrevi um pouco sobre ela. Considero a cozinha marroquina muito feminina. É cheia de camadas de sabor, generosa, sem frescura. Ao mesmo tempo, é complexa, combina especiarias, um pouco de ervas, muito limão em conserva, carne de cordeiro, aves. Mas tem como base um colo de cuscuz. Ele recebe sem discriminação qualquer ensopado, de carne, de legumes, aceita todos, recebe com carinho, e suaviza com respeito o mais potente dos sabores. Não é como iogurte, que neutraliza, ou água, que sai lavando, ou como a batata, que jura de pés juntos trazer para si o excesso de sal imposto pelo cozinheiro inexperiente. O cuscuz é como uma boa mãe, que estimula as características individuais de cada filho, mas imprime suavemente a marca dela em cada um.
Os meus filhos nunca experimentaram comida marroquina. Cuscuz, sim. Sempre. Mas usado de maneira singela, adaptado ao dia a dia de casa com crianças pequenas, que precisam de comida na mesa pelo menos três vezes ao dia. Não dá para viajar, dar um pulo no Marrocos em plena terça-feira. Mas este fim de semana começa na sexta. Quem sabe no feriado não aproveitamos todos para dar um mergulho nos aromas de Casablanca?