A avó de Amós Oz

A avó de Amós Oz
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Por Rita Lobo - 04 de julho de 2007


Há alguns anos, fiquei com um pouco de preguiça dos livros infantis que lia noite após noite para o meu filho Gabriel. Fiz um teste: peguei o livro que estava na minha cabeceira e comecei a ler em voz alta. Não era um livro para criança, mas justamente naquele trecho, o autor contava sobre o foguete que, aos 8 anos, construiu com “peças de uma geladeira abandonada e restos de uma velha motocicleta.” Gabriel ficou em êxtase. Que idéia maravilhosa a daquele garoto de Israel! O foguete serviria para atingir o palácio de Buckingham, caso “sua majestade o rei da Inglaterra, o rei George VI, da Casa de Windsor” não saísse de Israel em seis meses: “o nosso Dia do Perdão se tornará o dia do Juízo final da Grã-Bretanha”.

O mesmo menino, anos depois, criou o movimento israelense Paz Agora.

De amor e trevas foi o único livro de Amós Oz que Gabriel e eu lemos – quando fui para Israel, ele quis saber se eu iria me encontrar com o menino do foguete. Hoje, contei para ele que o garoto de Israel, agora com 68 anos, estava em Parati. Gabriel está mais interessado no foguete. Eu estou ansiosa para assistir ao debate do autor com a escritora Nadime Gordimer que acontecerá na sexta-feira. Dei uma folheada no livro e achei um trecho de que não me lembrava. Fiquei com vontade de ler para você.

“Muitas vezes os fatos ameaçam a verdade. Escrevi uma ocasião sobre o verdadeiro motivo da morte de minha avó: minha avó Shlomit chegou a Jerusalém diretamente de Vilna, num dia quente de verão do ano de 1933. Lançou um olhar atônito aos mercados suarentos, às barracas multicoloridas, às ruelas fervilhando de gente, de gritos de vendedores, de zurrar de burros, de balidos de bodes, de cacarejar de galinhas amarradas pelos pés, de pescoços mudos e sangrentos de aves agonizantes, olhou para os ombros e braços dos homens orientais e para o escândalo das cores berrantes das frutas e verduras, olhou para as montanhas em volta e para as rochas solitárias nas encostas, e proferiu a sentença implacável: “O Levante é cheio de micróbios”.

(...)Como parte de sua inflexível guerra cotidiana contra os micróbios, vovó manteve, sem concessões, a rotina de ferver frutas e verduras. O pão era esfregado uma ou duas vezes com uma toalhinha umedecida em uma solução de desinfetante químico de cor rosada, chamado Káli. Depois de cada refeição, vovó não lavava os talheres, mas, como se tratasse dos preparativos para o Pessach, submetia-os a prolongada fervura, e fazia o mesmo com ela própria: cozinhava-se três vezes ao dia. Fosse inverno ou verão costumava tomar três banhos de imersão quase fervendo, como parte do seu combate diário aos micróbios. Ela foi muito longeva, os micróbios e os vírus a reconheciam de longe e se apressavam em mudar de calçada. Quando ela tinha mais de oitenta anos de idade, depois de dois ou três ataques cardíacos, o Dr. Krumholtz a advertiu: Minha cara senhora, se não desistir desses banhos escaldantes, não me responsabilizo pelo que poderá, Deus não permita, lhe acontecer.

Mas vovó não podia abrir mão de seus banhos. O horror aos micróbios era soberano. Morreu no banho.

De fato, teve um infarto.

Mas a verdade é que minha avó morreu por excesso de limpeza, e não de um ataque cardíaco. Os fatos têm o péssimo hábito de ocultar a verdade aos nossos olhos. A limpeza a matou. Talvez o lema da sua vida em Jerusalém, “O Levante é cheio de micróbios”, aponte para uma verdade anterior, mais essencial que o demônio da limpeza, uma verdade sufocada e escondida dos olhares, pois, afinal, vovó Shlomit viera para Jerusalém do norte da Europa Oriental, lugar não menos hospitaleiro aos micróbios do que Jerusalém, sem falar de todos os outros tipos de agressores.

(...)A verdade é que não era para se proteger das ameaças do Levante que minha avó mortificara e purificara o corpo em banhos escaldantes nas manhãs, tardes e noites de todos os dias de sua vida em Jerusalém, mas sim, ao contrário, pelo fascínio que seus encantos sensuais exerciam sobre ela, pela voluptuosidade de seu próprio corpo, pela atração poderosa dos mercados que transbordavam e fluíam e ondulavam impetuosos a sua volta deixando a quase sem respirar, com uma vertigem na boca do estômago e um incontrolável tremor nos joelhos pela abundância de verduras, frutas e queijos tentadores e pelos perfumes penetrantes, entorpecentes de todas essas comidas estrangeiras e estranhas que a excitavam, e as mãos gulosas e insaciáveis que apalpavam - penetravam até o mais recôndito das montanhas de frutas e verduras e os pimentões vermelhos, e as azeitonas temperadas, e toda nudez daquelas carnes polpudas sangrentas, sem pele e sem vergonha que balançavam nos ganchos das feiras, e todos os temperos, e os pós, e as especiarias, até o dissolver dos sentidos, até quase o desmaio, toda sorte de tentações lascivas que lhe lançava esse mundo amargo, azedo e salgado, e também a fragrância pungente do café que a penetrava até o fundo do ventre, e as grandes jarras de vidro cheias de bebidas de mil cores, e nelas pedaços de gelo e limão, e os carregadores do mercado, robustos, bronzeados, peludos, nus da cintura para cima, com todos os músculos das costas tremendo pelo esforço sob a pele quente, reluzindo ao sol, ensopada de suor. Quem sabe se o culto à limpeza de minha avó não passava de um traje de astronauta, hermético e esterilizado? Ou de um anti-séptico cinto de castidade com que ela cingira voluntariamente a cintura para se resguardar das seduções desde o primeiro dia em Israel? E que trancara a sete chaves, jogando-as fora depois?

Por fim, sofreu um ataque cardíaco que a matou. Um ataque de fato. Mas não foi o coração que a matou, e sim o excesso de limpeza. Ou antes, nem foi a limpeza, mas seus desejos ardentes e secretos a mataram. Ou melhor, nem foram os desejos, mas o pavor de vir a ser tentada pelos desejos. Ou – nem a limpeza, nem os desejos, nem o pavor dos desejos, mas a raiva inconfessa e permanente que tinha desse pavor, uma raiva sufocada, maligna, inesgotável, raiva de seu próprio corpo, raiva do seu desejo, e também outra raiva, ainda mais profunda, a raiva de fugir de seus próprios desejos, raiva opaca, venenosa, raiva da prisioneira e da carcereira, anos e anos de luto secreto pelo tempo vazio que passa e repassa sobre o corpo encolhido pela voracidade sufocada desse mesmo corpo. Foram esses os desejos, lavados milhares de vezes e ensaboados até a náusea, e desinfetados, e esfregados, e fervidos, esse o desejo do Levante, malcheiroso, suado, animalesco, delicioso até o desmaio, mas cheio de micróbios.